Máquinas de ver, modos de ser

“Uma ‘época’ não preexiste aos enunciados que a exprimem nem às visibilidades que a preenchem.” Gilles Deleuze

Introdução

Na obra “Máquinas de ver, modos de ser: vigilância, tecnologia e subjetividade”, Fernanda Bruno apresenta sua atualização da teoria da vigilância ao fim da primeira década do século XXI. Esta atualização é feita a partir da análise dos relacionamentos da vigilância com a segurança, com o espetáculo e com a informação por meio da utilização do conceito de “vigilância distribuída” criado pela autora.

O primeiro capítulo trata da conceituação da vigilância distribuída e seus atributos e da relação entre vigilância e segurança, especialmente no período pós 11 de setembro de 2001. O primeiro capítulo busca apresentar, ainda de modo panorâmico, os principais aspectos das máquinas de ver e vigiar na contemporaneidade, ressaltando as suas zonas de interseção com a segurança.

“A expansão da videovigilância, notável nos grandes centros urbanos após os atentados de 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos, reorganiza as relações entre segurança e vigilância. Elas não mais focalizam populações e espaços classificados como perigosos ou suspeitos, mas se dirigem a toda sorte de espaço público, semipúblico e privado.” (p. 8)

Por que Vigilância Distribuída

Para tratar de seu conceito de Vigilância Distribuída, Fernanda Bruno recupera as noções foucaultianas de regimes de visibilidade e de verdade e de dispositivo.

Sobre os regimes de verdade e visibilidade:

“Um regime de verdade designa, para este autor (Foucault), os tipos de discursos que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros ou falsos, a maneira pela qual se sanciona uns e outros; as técnicas e os procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade; o estatuto daqueles que se encarregam de dizer o que funciona como verdadeiro (Foucault, 1994, p. 112)”

“Se cada época tem seu regime de visibilidade próprio, ele não pode ser deduzido nem dos atributos ou atos de um sujeito universal da visão nem dos dados empíricos de um mundo em si mesmo visível. Um regime de visibilidade consiste, antes, não tanto no que é visto, mas no que torna possível o que se vê.”

E sobre o conceito de dispositivo e sua utilidade:

“Resumidamente, um dispositivo comporta três traços centrais: um conjunto de elementos heterogêneos; uma função estratégica; jogos e formações de poder e saber. Os elementos heterogêneos podem ser “discursos, instituições, disposições arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas” (Foucault, 1990, p. 244). A heterogeneidade dos elementos comporta assim tanto o dito quanto o não dito, sendo este último, vale dizer, não exatamente o implícito, o oculto, e sim o que não se diz pela via de um enunciado linguístico, mas que se expressa e se afirma em técnicas, procedimentos, ordenações espaciais, arquiteturais etc. Tais elementos constituem uma rede de relações, e o dispositivo consiste menos nos elementos do que na rede que se estabelece entre eles. E, nessa rede, as posições e as funções são móveis, pois entre os elementos há um tipo de jogo e uma relação de forças que são variáveis.” (p. 19)

O dispositivo para Foucault tem como componentes essenciais as curvas de visibilidade e as curvas de enunciação;

Curvas de visibilidade: → Cada dispositivo faz fazer o visível e o invisível. → Nas curvas das linhas que formam o dispositivo conseguimos delimitar o regime de visibilidade do dispositivo em questão.

Curvas de enunciação: → As enunciações são curvas que distribuem variáveis para os elementos

Ver mais em Michel Foucault

Com base nestes conceitos, a autora apresenta então como é composto o regime de visibilidade por meio dos dispositivos contemporâneos de vigilância.

“Atividades de vigilância voltadas para indivíduos ou populações humanas envolvem, de modo geral, três elementos centrais: observação, conhecimento e intervenção” (p. 18)

“Assim, em linhas gerais, uma atividade de vigilância pode ser definida como a observação sistemática e focalizada de indivíduos, populações ou informações relativas a eles, tendo em vista produzir conhecimento e intervir sobre os mesmos, de modo a conduzir suas condutas.” (p. 18)

O conceito de vigilância distribuída desenvolvido pela autora tem como objetivo descrever as singularidades das práticas e processos de vigilância nas sociedades contemporâneas, bem como seus regimes de legitimação (p. 13), que são formados a partir de elementos heterogêneos, constituindo uma rede multifacetada, plena de conflitos e ambiguidades (p. 17).

“Quanto à vigilância contemporânea, a sua função estratégica se exerce em três principais circuitos, que buscam legitimar suas práticas: os circuitos de segurança e controle; os circuitos de visibilidade midiática; os circuitos de eficácia informacional.” (p. 21)

A autora identifica que entre os processos de vigilância analisados desde a década de 80 por autores como Foucault e os processos contemporâneos que a obra busca compreender existem importantes diferenças:

“As mudanças mais importantes se passam não tanto na intensidade da vigilância, mas no seu modo de funcionamento, que se encontra em muitos aspectos bastante distanciado do modelo panóptico.” (p. 26) [[ O Panóptico ]]

“O contrário, os atuais processos de vigilância só podem ser entendidos se levarmos em conta que as ações que os constituem são distribuídas por diferentes setores cujos interesses e perspectivas são múltiplos e não obedecem a nenhum princípio unificado.” (p. 26)

Após apresentar a vigilância distribuída, Fernanda Bruno parte para uma enumeração de sete atributos que a definem.

Uma Lista Incompleta de Sete Atributos

  1. Vigilância Ubíqua e Descentralizada

    “Trata-se, primeiramente, de uma vigilância que tende a se tornar cada vez mais ubíqua e incorporada aos diversos dispositivos tecnológicos, serviços e ambientes que usamos cotidianamente, mas que se exerce de modo descentralizado, sem hierarquias estáveis e com uma diversidade de propósitos, funções e significações nos mais diferentes setores (…) Neste ponto, nota-se que a vigilância distribuída não se confunde com uma estrutura panóptica (Bentham, op.cit.; Foucault, 1983), que supõe sistemas centralizados e hierarquizados, ainda que pontualmente haja práticas, tecnologias, discursos que operem segundo estes princípios.” (p. 30)

Aqui, o conceito de vigilância distribuída se assemelha ao conceito pós-panóptico de montagem de vigilâncias, ou [[ Surveillant Assemblage| The Surveillant Assemblage ]], cunhado por Haggerty e Ericson.

  1. Diversidade de tecnologias e objetos

    “O segundo atributo, já apontado no anterior, é a diversidade de tecnologias, práticas, propósitos e objetos da vigilância (…) No seio dessa espécie de vigilância para todos, há ainda uma variedade de focos possíveis, pois as atuais tecnologias que constituem esse regime de vigilância distribuída não vigiam ou monitoram apenas indivíduos ou grupos, mas informações, transações eletrônicas, condutas, deslocamentos e rastros deixados no ciberespaço, fluxos de corpos no espaço urbano etc.” (pp. 30-31)

  2. Indiscernibilidade dos vigias e vigiados

    “Uma terceira característica deriva daí: diferentemente dos dispositivos modernos de inspeção, que vigiavam um conjunto predefinido de indivíduos cuja presença se devia à própria instituição que as vigiava (prisioneiros, enfermos etc.) e cujo funcionamento estava atrelado a uma cadeia hierárquica que distinguia vigias e vigiados, hoje esses dois termos gozam de uma relativa indiscernibilidade, assim como todos podem ser potencialmente vítimas ou suspeitos.” (p. 31)

  3. A função potencial e não planejada da vigiliância

    “Aí reside a quarta característica da vigilância distribuída: em alguns casos, ela é uma função potencial ou um efeito secundário de dispositivos que são projetados inicialmente para outras finalidades – controle de fluxos e acessos, comunicação, publicidade, geolocalização, entretenimento, sociabilidade etc. No entanto, é importante destacar que o fato de a vigilância não estar inicialmente prevista em certas tecnologias não a torna neutra ou sem efeitos;” (p. 32)

“Mas o fato de a vigilância estar presente como uma possibilidade da própria arquitetura desses dispositivos não implica, contudo, que ela seja necessária. Ela pode muito bem não se atualizar; mas, quando se atualiza, opera no interior do próprio dispositivo, modulando-o e não descaracterizando-o.” (pp. 32-33)

  1. Vigilância por agentes humanos e não humanos

    “O quinto atributo é patente: a vigilância não apenas se distribui entre diversos indivíduos e instituições, como entre agentes humanos e não humanos. É claro que o exercício da vigilância sempre foi partilhado por homens e artefatos técnicos, e tal partilha se intensifica hoje de muitas maneiras, seja porque os dispositivos técnicos estão cada vez mais presentes no cotidiano dos indivíduos, seja porque multiplicam-se as formas de delegação da vigilância a tecnologias que ampliam enormemente o espectro de indivíduos, ações, informações e comportamentos sob vigilância, transpondo com facilidade limites espaciais, temporais, financeiros etc. A distribuição aqui não implica apenas uma divisão de tarefas, mas uma mudança na própria ‘natureza’ da vigilância – a delegação a sistemas técnicos automatizados (Cf. Latour, 1994) permite que ela se exerça a distância, em tempo real, com baixo custo e extensões impensáveis para os limites estritamente humanos.” (p. 33)

  2. Expansão da vigilância para além do controle e segurança

    “Sexta característica, já indicada: a vigilância contemporânea não está restrita aos circuitos de controle, segurança e normalização, mas se faz também intensamente presente nos circuitos de entretenimento e prazer, como nos mostram os reality shows, os sites de compartilhamento de vídeo e imagem, as redes sociais, setores do jornalismo impresso e do telejornalismo etc.” (p. 34)

  3. A multiplicidade da vigilância e de seus efeitos e pressupostos

    “Este é o sétimo e último atributo geral a destacar. No atual estado de vigilância distribuída convivem modelos mais hierarquizados e unilaterais (presentes sobretudo na videovigilância) e modelos participativos e colaborativos, em que os indivíduos são mobilizados a adotar um olhar e uma atenção vigilantes sobre o outro, a cidade, o mundo. As redes de vigilância distribuída não cabem, portanto, nos contornos de uma vigilância hiperpanóptica. Como se pode ver, não se trata de uma simples expansão de modelos historicamente conhecidos, mas de uma outra configuração das práticas e dispositivos em que a vigilância se torna um processo distribuído entre múltiplos agentes, técnicas, funções, contextos, propósitos, afetos etc.” (p. 37)

Tríplice Regime de Legitimação: Segurança, Visibilidade, Eficácia

“Contemporaneamente, identifico pelo menos três grandes vias pelas quais se busca tornar a vigilância aceitável e por vezes requerida. A primeira delas, mais evidente, é a da segurança (…) A vigilância tem se tornado, assim, uma resposta que se pretende autoevidente frente a diversos riscos sociais” (pp. 37-40)

A premissa da segurança se apresenta como uma carta branca para a vigilância, visto que se pretende proteger a sociedade não de fatos passados mas de hipotéticos riscos futuros.

“Em resumo, como o risco está sempre potencialmente presente e tem a sua efetivação atrelada a decisões humanas, há supostamente sempre algo a ser feito para evitá-lo, o que acaba legitimando a ampliação da vigilância preventiva, que sempre pode se valer do argumento de que o cenário seria ainda pior se ela não estivesse aí.” (p. 44)

“Esta forma de segurança baseada no risco legitima uma vigilância que fornece provas sem crime e, ainda, o monitoramento e a classificação sistemáticos de informações pessoais de populações inteiras no intento de prever e prevenir atos criminosos eventuais. Vigilância para todos, como já indicamos, e não mais para grupos suspeitos ou sabidamente “perigosos”.” (p. 46)

Outra motivação recorrente para a vigilância é a do espetáculo e da estética da observação constante.

“A segunda via de legitimação da vigilância distribuída provém das práticas e dispositivos de visibilidade próprios às mídias contemporâneas (…) Ao mesmo tempo em que a sociedade moderna fez dos indivíduos um foco de visibilidade dos procedimentos disciplinares, ela também os incitou e os excitou enquanto espectadores e observadores de toda uma cultura visual nascente, intimamente atrelada à vida urbana. Observadores estimulados e excitados pelo fluxo movente da vida e das paisagens modernas, pela aceleração dos ritmos e deslocamentos, pela complexificação da vida urbana, pelo advento de novos objetos e mercadorias, bem como pelas novas tecnologias de produção e reprodução da imagem (fotografia, cinema, estereoscópio etc.).” (pp. 46-47)

[[ Mathiesen ]] (1997) propõe o termo “sinóptico” para designar esses novos nexos entre o poder e o olhar, em que muitos vigiam poucos (p. 47)

“Ver e ser visto ganham aqui sentidos atrelados à reputação, pertencimento, admiração, desejo, conferindo à visibilidade uma conotação prioritariamente positiva, desejável, que ressoa nos sentidos sociais que a vigilância assume hoje. Ser visto e ser vigiado, assim como ver e vigiar, são progressivamente incorporados no repertório perceptivo, afetivo, atencional, social, e associados a processos de prazer, diversão, sociabilidade” (p. 47)

Neste sentido, [[ Lyon e Bauman ]] afirmam que, no contexto das redes sociais, o desconforto maior não é o de ser vigiado mas sim seu oposto: o medo de ser ignorado.

“Embora distintos, o regime da segurança e o regime midiático de visibilidade se alimentam e se apoiam reciprocamente na legitimação da vigilância.” (p. 47)

A terceira motivação para a vigilância contemporânea apresentada pela autora é a da necessidade de produção e compartilhamento de informação.

“Por fim, uma terceira via de legitimação da vigilância vem se articular às anteriores, complexificando os cruzamentos entre elas. Por falta de nome mais apropriado, falemos de regime de eficiência informacional, especialmente vigente nas redes digitais de comunicação distribuída e serviços a ela associados. (…) Ou seja, a oferta de um serviço eficaz está atrelada a procedimentos de monitoramento, coleta, arquivo e classificação dos dados de seus usuários” (p. 49)

Capítulo II - Ver e ser Visto: Subjetividade, Estética e Atenção

O eixo das relações entre visibilidade e vigilância, tratado no segundo capítulo, dedica-se às interseções com o espetáculo, a estética, a produção de subjetividades e seus regimes atencionais. Neste capítulo, a autora trata da a matriz escópica dos processos de vigilância, atrelada aos modos de organização do visível e do invisível, do ver e do ser visto

“Neste capítulo, percorreremos as interseções entre dispositivos de visibilidade e vigilância, especialmente, mas não exclusivamente, no campo das atuais tecnologias e redes de comunicação, sempre visando ao cruzamento entre os circuitos de segurança e controle e os circuitos de entretenimento e prazer. Focalizaremos as implicações dessas interseções para as subjetividades contemporâneas e para a constituição de uma estética da vigilância. Dentre diversos elementos comuns a esses dois focos, destaca-se um processo de naturalização da vigilância como modo de olhar e prestar atenção nas sociedades contemporâneas.” (pp. 53-54)

A autora apresenta dois deslocamentos que concernem à subjetividade:

“O primeiro diz respeito a uma reconfiguração topológica da subjetividade, cujo foco de investimentos e cuidados se deslocam da interioridade, da profundidade e da opacidade para a exterioridade, a aparência e a visibilidade. Deste modo, uma subjetividade exteriorizada vem se sobrepor a uma subjetividade interiorizada cuja topologia, delimitada na modernidade, era atrelada à introspecção e à hermenêutica. O segundo deslocamento, vinculado ao anterior, concerne a mudanças no estatuto do olhar do outro. Mudanças que reconfiguram as fronteiras entre público e privado, especialmente em ambientes comunicacionais marcados pela exposição do eu. Os primeiros tópicos deste capítulo tratam destes dois deslocamentos.” (pp. 54-55)

Topologias da Subjetividade: Interioridade e Exterioridade

Sabe-se que o olhar é indissociável da história da formação da subjetividade. Donna Haraway identifica nos olhos e na visão a “habilidade perversa (…) de distanciar o sujeito cognoscente de todos e de tudo no interesse do poder desmesurado”, habilidade essa que define muitas das críticas necessárias à objetividade da ciência militarista, masculina, capitalista e colonial. Por outro lado, é também a partir da visão que a autora define sua solução para o problema da objetividade na produção de conhecimento feminista, por meio do que ela entitula “saberes localizados”.

“Em sua genealogia da alma moderna, uma das definições do projeto de Vigiar e Punir (1983, p. 31), a subjetividade é inseparável dos dispositivos de visibilidade. As instituições disciplinares, que encontram seu modelo ideal no panóptico, são máquinas de ver que produzem modos de ser. O poder disciplinar e a produção de individualidades e subjetividades que lhe corresponde não podem ser dissociados de um jogo de olhares e uma “arte obscura da luz e do visível” (Idem, p. 154), presentes nos seus diversos dispositivos, mais ou menos materiais.” (pp. 56-57)

“Contudo, se permanece presente esta íntima relação entre a produção de subjetividade e a exposição do indivíduo comum à visibilidade, ela também ganha novos contornos e envolve uma outra topologia da subjetividade, distinta daquela que voltava os cuidados, os saberes e a observação para uma interioridade cheia de sombras.” (p. 59)

Esta outra topologia da subjetividade é o tema do próximo tópico do livro.

A máquina Panóptica e a Tópica da Interioridade

Neste tópico a autora busca tratar da lógica do espetáculo e da arte teatral no Panóptico de Bentham, espelhando as intersecções entre segurança e espetáculo.

“No panóptico, o espetáculo é submetido ao princípio utilitarista da economia e do cálculo. Cálculo das aparências e economia da realidade: a aparência deve exceder a realidade, de modo a obter sempre o maior número de efeitos com a mínima causa. (…) O espetáculo assim concebido orienta os efeitos de luz e contraluz, as visibilidades e invisibilidades que garantem a eficiência do olho central, ao mesmo tempo onividente e invisível, o olho que vê sem ser visto.” (p. 61)

“Ao se esconder e impedir a verificação de sua presença real, o olho intensifica seus poderes – seus efeitos e sua força aparente – e na mesma medida economiza seus custos reais” (p. 61)

Esse resultado decorrente do cálculo de aparências utilitarista gera resultados na subjetividade por meio da interiorização da vigilância e da autovigilância:

“Se articularmos essas considerações acerca do espetáculo panóptico com a análise de Foucault, notamos que um efeito bem real deste cálculo das aparências é a interiorização do olhar vigilante, que assegura o funcionamento automático do poder e a passagem à autovigilância.” (p. 62)

“E à visibilidade é preciso somar uma dose de sofrimento, fundamental para a requerida reforma, que deve ser, mais que dos corpos e comportamentos, da própria alma. O próprio sofrimento deve encontrar sua sede não mais no corpo, e sim na alma: culpa. Fazer sofrer a alma, e não o corpo – eis a lógica de um poder que, em vez de negar e reprimir uma individualidade constituída, produz uma subjetividade que julga e condena a si mesma.” (p. 63)

Tecnologias de Comunicação e Topologias da Exterioridade

A da culpa que molda e é moldada pela autovigilância imposta no interno da subjetividade do indivíduo pode ser caracterizada como um dispositivo moderno já presente e analisado no Panóptico de Bentham.

Neste tópico, Fernanda Bruno apresenta um dispositivo contemporâneo que possibilita uma vigilância imposta externamente à subjetividade, por meio da exposição constante de si.

“Se os dispositivos de visibilidade modernos escavavam uma subjetividade interiorizada que, a partir do olhar do outro, instaurava a autovigilância, hoje parece estar se constituindo uma subjetividade exteriorizada, em que as esferas de cuidado e controle de si se fazem na exposição pública, no alcance do olhar, escrutínio ou conhecimento do outro. O decisivo aqui é compreender essa subjetividade que se modula como exterioridade, no movimento mesmo de se fazer visível ao outro.” (pp. 67-68)

“As subjetividades contemporâneas, na medida em que se afastam da tópica moderna que privilegiava a profundidade e a interioridade como dimensões autênticas e verdadeiras, parecem não mais obedecer inteiramente à lógica que associa a aparência e a superficialidade aos domínios do engodo, da mentira e da manipulação” (p. 70)

Quem está olhando?

Este próximo tópico do livro trata da vigilância modelada pela busca da informação para servir ao “olho público”, uma informação à serviço da transparência.

“O olho republicano representa o sonho de uma sociedade transparente, visível e legível, sem zonas obscuras e reguladas pelos privilégios do poder real. Nesta utopia política do olhar, a transparência pública se opõe aos interesses privados, associados a complôs e traições (Perrot, 1987). O olho público e a ilusão da vigilância democrática da opinião representavam um modelo de poder que se exerceria pelo simples fato de que as coisas seriam sabidas e vistas por um tipo de olhar imediato, coletivo e anônimo, sem fragmentos de noite (Foucault, 1993).” (p. 77)

Em Vigiar e Punir Michel Foucault analisa os “sonhos políticos” atrelados às espécies e formas de vigilâncias específicas implementadas para controlar a peste negra e a lepra. Segundo o autor, a resposta à peste vem com o sonho político da ordem e da disciplina, que fazem valer seu poder de análise para combater a confusão que surge da mistura que representa a doença, reproduzindo uma sociedade disciplinar, enquanto o sonho político que deseja o controle da lepra é o de uma “comunidade pura”, institucionalizando um sistema de exclusão sem volta, implementado por meio da rejeição e exclusão sem volta do leproso.

“O olho público passa a ser associado à interdição e à norma, enquanto a esfera privada afirma-se como um lugar que pode escapar da penetração da ordem pública na vida cotidiana e como refúgio onde convivem intimidade e liberdade. O olhar do outro assume aqui uma forma superegoica, um olhar que encarna a lei, do qual ninguém se furta plenamente, posto que, segundo o diagrama moderno, não há indivíduo e subjetividade que se constituam fora deste olhar.” (p. 78)

“Não é por acaso também que a esfera privada, ainda que seja atravessada por este olho superegoico, requisita uma dimensão íntima, secreta e protegida dos olhares públicos. O espaço interior da vida privada vai simultaneamente se individualizando e se complexificando, ganhando regiões ao mesmo tempo mais íntimas e secretas – o quarto individual, a toalete íntima, o espelho de corpo inteiro presente no quarto e no banheiro.” (p. 79)

“Passamos de Édipo a Narciso, da culpa ao medo de não estar a altura de si mesmo, do conflito ao fascínio da imagem?” (p. 80)

Arquiteturas da Regularidade e Circuitos de Controle: Videovigilância

Sobre as câmeras de videovigilância, Fernanda Bruno destaca três principais aspectos decorrentes do caráter opaco, impessoal e transinstitucional do olhar da câmera de vigilância.

A câmera de vigilância atua como uma espécie de terceiro olho frente ao qual a margem de negociação é muito reduzida. O sujeito do olhar da câmera é, antes de tudo, invisível, desconhecido e inverificável por parte dos que são observados. Esta opacidade e esta impessoalidade não se devem apenas ao fato de não podermos ver quem está observando, mas também ao fato de esta imagem ser potencialmente objeto de múltiplos olhares de uma cadeia institucional qualquer. Há, pois, um desequilíbrio entre a instância de observação e os indivíduos observados, que envolve ao menos três níveis.

  • O nível espacial, pois a imagem da ação observada não se passa no mesmo lugar em que a ação ocorre.
  • O nível temporal, específico para a imagem registrada, pois não se trata apenas de ver, mas de rever e recriar o olhar quantas vezes se desejar. Produz-se assim uma imagem indefinidamente estocada para o futuro, tornando o seu destino e a sua significação bem mais incertos, suspensos e sujeitos a um olhar a posteriori.
  • Por fim, o desequilíbrio social concerne à dissimetria na relação de poder entre o observador e o observado, na medida em que a impossibilidade de ver e negociar com o sujeito do olhar torna o indivíduo sob vigilância relativamente impotente frente a sua própria imagem, que é de algum modo confiscada pela câmera (pp. 89-90)

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