Michel Foucault

A História da Sexualidade I

1 - O que está em jogo

“Que o sexo não seja ‘reprimido’, não é de fato uma asserção nova.”

“A correlação de poder já estaria lá onde está o desejo: ilusão, portanto, denunciá-lo numa repressão exercida a posteriori; vão, também, partir à cata de um desejo exterior ao poder”

  • A relação negativa: com respeito ao sexo, o poder jamais estabelece relação que não seja de modo negativo: rejeição, exclusão, recusa, barragem ou, ainda, ocultação e mascaramento. O poder não “pode” nada contra o sexo e os prazeres, salvo dizer-lhes não;
  • A instância da regra: o sexo é reduzido pelo poder a um regime binário: lícito e ilícito, permitido e proibido. “A forma pura do poder se encontraria na função do legislador; e seu modo de ação com respeito ao sexo seria jurídico-discursivo”.

  • O ciclo da Interdição: Sobre o sexo, o poder só faria funcionar uma lei de proibição. O objetivo do poder é que o sexo reuncie-se a si mesmo, cumprido pela ameaça da supressão do sexo como castigo. “Renuncia a ti mesmo sob pena de seres suprimido”. O poder oprime o sexo exclusivamente através de uma interdição que joga com a alternativa entre duas inexistências.

  • A lógica da censura: Supõe-se que essa interdição tome três formas: afirmar que não é permitido, impedir que se diga, negar que exista

  • A unidade do dispositivo: “Em face de um poder, que é lei, o sujeito que é constituído como sujeito - que é “sujeitado” - é aquele que obedece”. O poder sobre o sexo é exercido do mesmo modo desde suas decisões globais até as intervenções capilares.

A mecânica do poder sobre o sexo é estranhamente limitativa, pois é pobre em recursos econômicos, monótona nas táticas que utiliza, incapaz de invenção e como que condenado a se repetir sempre. Além disso, é um poder que só tem a potência do “não”.

Pensar o poder a partir do direito e da violência, da lei e da ilegalidade, da vontade e da liberdade, do Estado e da soberania, é pensá-lo a partir de uma forma histórica bem particular às nossas sociedades: a monarquia jurídica.

“Quer o poder seja isso ou aquilo, de todo modo continua-se a concebê-lo relativamente a um poder que é sempre jurídico e discursivo - poder cujo ponto central se encontra na enunciação da lei.”

“é preciso construir uma analítica do poder que não tome mais o direito como modelo e código”.

2 - Método

“Deve-se compreender o poder, primeiro, como a multiplicidade de correlações de força imanentes ao domínio onde se exercem e constitutivas de sua organização”

“O poder está em toda parte; não porque englobe tudo e sim porque provém de todos os lugares.”

“O poder não é uma instituição e nem uma estrutura, não é uma certa potência de que alguns sejam dotados: é o nome dado a uma situação estratégica complexa numa sociedade determinada”.

  • O poder não é algo que se adquira, e sim algo que se exerce a partir de inúmeros pontos e em meio a relações desiguais e móveis;

  • As relações de poder não se encontram em posição de exterioridade com respeito a outros tipos de relações, mas lhes são imanentes;

  • O poder vem de baixo, não havendo uma oposição binária e global entre os dominadores e os dominados que repercute de cima a baixo;

  • As relações de poder são, ao mesmo tempo, intencionais e não subjetivas.

  • Onde há poder há resistência, então a resistência nunca está em posição de exterioridade ao poder. Há um caráter estritamente relacional nas correlações de poder, e uma pluralidade de resistências, que não são somente a negação do poder, mas também pluralidade de possibilidades. A codificação estratégica dos pontos de resistência dispersos de forma desigual que torna possível uma revolução.

“Ao invés de inferir todas as violências infinitesimais que se exercem sobre o sexo, todos os olhares inquietos lançados sobre ele e todas as ocultações com que se oblitera o conhecimento possível do mesmo, à forma única do Grande Poder, trata-se de imergir a produção exuberante dos discursos sobre o sexo no campo das relações de poder, multiplas e móveis.”

4 prescrições de prudência:

  1. Regra de imanência Se a sexualidade se constituiu como domínio a conhecer, foi a partir de relações de poder que a instituíram como objeto possível. Assim, não existe um domínio da sexualidade “neutro” sobre o qual as exigências do poder fizeram pesar mecanismos de proibição. Parte-se, então, dos “focos locais” de poder-saber.

  2. Regra das variações contínuas: Metodologia não deve procurar quem tem poder e quem é privado de poder na ordem da sexualidade, nem quem tem o direito de saber ou é mantido na ignorância, vez que estas não são mais do que cortes instantâneos nos processos. Ao contrário, o importante é buscar o esquema das modificações que as correlações de força implicam através do seu próprio jogo.

  3. Regra do duplo condicionamento Nenhum foco local funciona se não estiver inserido em um esquema de transformação. E nenhum esquema de transformação funcionária senão através de uma série de encadeamentos sucessivos nos focos locais. Assim, o pai não representa o Estado soberano na família e nem o Estado não é projeção do pai na sociedade.

  4. Regra da polivalência tática dos discursos O discurso é uma série de segmentos descontínuos, cuja função tática não é uniforme e nem estável. Os discursos nem são submetidos de uma vez por todas ao poder e nem são opostos a ele.

3 - Domínio

→ Nas relações de poder, a sexualidade não é o elemento mais rígido, mas um dos dotados da maior instrumentalidade: utilizável no maior número de manobras, e podendo servir de ponto de apoio, de articulação às mais variadas estratégias.

4 grandes conjuntos estratégicos que desenvolvem dispositivos específicos de saber e poder a respeito do sexo:

  1. Histerização (que é a transformação em enigma) do corpo da mulher: O corpo da mulher foi analisado em um processo tríplice:
    • Qualificado e desqualificado como corpo saturado de sexualidade;
    • Integrado ao campo das práticas médicas, tendo uma patologia intrínseca;
    • Posto na posição da “Mãe”, que se relaciona com a sociedade (assegurando sua continuidade), com a família (da qual deve ser elemento substancial e funcional) e com as crianças (com quem tem uma responsabilidade biológico-moral) → Representado pela mulher histérica
  2. Pedagogização do sexo da criança: → É a dupla afirmação de que as crianças são suscetíveis a uma atividade que é, ao mesmo tempo, “natural” e “contra a natureza” → Representado pela criança masturbadora

  3. Socialização das condutas de procriação: → Socialização econômica da procriação, regida pelas mais diversas medidas de controle da natalidade, sendo os casais responsabilizados por todo o corpo social; → Representado pelo casal malthusiano

  4. Psiquiatrização do prazer perverso: → delimitação de todas as formas de anomalia por meio do prazer; → normalização e patologização das condutas delimitadas; → Representado pelo adulto perverso

Estes conjuntos estratégicos são a verdadeira produção da sexualidade. A sexualidade não é um dado da natureza que o poder ameaça e controla e nem um domínio obscuro que o saber tenta desvelar.

Dispositivo

O dispositivo é uma das categorias mais relevantes na obra de Foucault, e uma das ferramentas mais úteis que o autor utiliza. O dispositivo é um conjunto multilinear. Estas linhas que compõem o dispositivo são emaranhadas, e o método que o Foucault usa para analisar esses dispositivos propõe um certo desemaranhar.

As primeiras duas dimensões de um dispositivo, ou aquelas que Foucault destaca em primeiro lugar, são as curvas de visibilidade e as curvas de enunciação.

  • Curvas de visibilidade: → Cada dispositivo faz fazer o visível e o invisível. → Nas curvas das linhas que formam o dispositivo conseguimos delimitar o regime de visibilidade do dispositivo em questão.

  • Curvas de enunciação: → As enunciações são curvas que distribuem variáveis para os elementos

Além das curvas de visibilidade e enunciação, que são como que momentos em que podemos entender o regime de visibilidade e o regime de enunciação do dispositivo, os dispositivos são constituídos também por linhas de força.

  • Linhas de força: → De certa forma as linhas de força são a dimensão do poder dentro do dispositivo; → É esta dimensão de poder que delimita os trajetos, reforça as curvas e demarca um sentido para as linhas que formam o dispositivo

Dispositivo de aliança vs. Dispositivo de sexualidade:

Sistema de matrimônio, de desenvolvimento de parentescos e transmissão de bens. → A partir do século XVIII, se superpõe o dispositivo de sexualidade. Enquanto o dispositivo de aliança reproduz a trama de relações e mantém a lei que as rege, o dispositivo de sexualidade engendra uma extensão permanente dos domínios e das formas de controle. → A família constituída pelo dispositivo de aliança é o suporte permanente do dispositivo de sexualidade O dispositivo de sexualidade tem como razão de ser não o reproduzir, mas o proliferar, inovar, anexar, inventar, penetrar nos corpos de maneira cada vez mais detalhada e controlar as populações de modo cada vez mais global.

4 - Periodização

Foucault analisa a história da sexualidade a partir da metodologia que pensa fora de uma linearidade com começo, meio e fim.

Não está interessado em produzir uma historiografia da sexualidade, mas construir um problema. Assim, Foucault pensa o tempo a partir da movimentação do problema da sexualidade. A questão principal é: o que é que o dispositivo de sexualidade faz fazer.

A história da sexualidade supõe duas rupturas: → o nascimento das grandes proibições, no Século XVII → atenuação dos mecanismos de repressão, relativa tolerância e eliminação de tabus no século XX

No fim do século XVII nasce uma tecnologia do sexo inteiramente nova: Nova porque, além da dimensão do pecado, ela assume um nova dimensão em três eixos:

  1. Eixo da pedagogia, que trata especificamente da sexualidade da criança;
  2. Eixo da medicina, com a fisiologia sexual da mulher como objeto;
  3. Eixo da demografia, com a regulação dos nascimentos.

Existe aí uma continuidade visível da noção de pecado regendo a carne, mas isso não impede uma transformação capital: a tecnologia do sexo, por meio das instituições médicas e da exigência de normalidade, passa a tratar do problema da “vida” e da “doença”, enquanto numa visão estrita do pecado da carne o problema seria o da “morte” e do “castigo eterno”.

Neste contexto, de fim do século XVIII e início do XIX, se separa a medicina do sexo da medicina do corpo (Psychopathia sexualis).

Em conjunto com as noções iniciais de genética e da teoria da evolução, é trazida uma “responsabilidade biológica” ao sexo, em especial na ideia da eugenia.

Sobre a difusão das técnicas sobre a sexualidade:

Estes processos sobre a sexualidade, para Foucault, foram implementados primeiro e com mais intensidade não nas famílias mais pobres, mas nas famílias burguesas e aristocráticas.

“Fica muito duvidosa a ideia de um ciclo repressivo, com um começo e um fim, traçando, pelo menos, uma curva, com seus pontos de inflexão: provavelmente não houve uma época de restrição sexual; e tais datas também provocam a dúvida quanto à homogeneidade do processo em todos os níveis da sociedade e em todas as classes”.

“Mas, sobretudo, tornam problemático o sentido do processo e suas razões de ser: não foi, ao que parece como princípio de limitação do prazer dos outros que o dispositivo de sexualidade foi instaurado pelas classes dirigentes. Parece, ao contrário, que o testaram em si mesmas.”

Para Foucault, mais do que uma mera repressão moral e limitação do prazer dos outros, o dispositivo da sexualidade busca uma problematização da saúde e de suas condições de funcionamento; novas técnicas de maximizar a vida. O dispositivo da sexualidade é uma auto-afirmação de uma classe, e não uma sujeição de outra. É um agenciamento político da vida, que se constituiu, não através da submissão de outrem, mas numa afirmação de si.

De certo modo, a burguesia substitui a obsessão da nobreza do antigo regime pelo sangue, por ter um sangue azul, pela obsessão de um corpo saudável e forte, fruto de uma sexualidade utilitarista para a construção deste corpo desejado.

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